Nildo Viana*
A formação do gosto musical é
algo pouco discutido teoricamente e nas ciências humanas. O processo de
formação do gosto é social e não individual, tese que só seria defensável no
mundo das ideologias. Obviamente que tais ideologias existiram e ainda
continuam existindo. Aqui vamos trabalhar com a formação social do gosto
musical e do papel do capital fonográfico na sua constituição[1],
o que nos leva a discutir inúmeras outras questões, como valores, gostos
distintos e grupos sociais distintos, entre outros.
O gosto, em geral, pode ser
pensado sob duas formas: o espontâneo e o refletido[2].
O gosto espontâneo é aquele no qual os indivíduos desenvolvem sem maiores
reflexões, por familiaridade, acessibilidade, compartilhamento social. O gosto
refletido é aquele no qual os indivíduos se informam, relacionam com outros
aspectos da vida social, usa os valores fundamentais como critério para suas
escolhas, etc. Obviamente que no gosto espontâneo, o preconceito, as
idiossincrasias e outras determinações também atuam, mas sem um processo reflexivo.
No caso do gosto refletido, essas determinações também atuam, mas geralmente
sob a forma racionalizada. No caso do gosto musical, esse processo se manifesta
da mesma forma.
Nesse sentido, o gosto dos
indivíduos é formado socialmente, mas como os indivíduos possuem uma
singularidade psíquica (VIANA, 2011a; VIANA, 2013), uma história de vida única,
então as chamadas idiossincrasias são elementos diferenciadores na constituição
do gosto. No caso do gosto musical, deixando de lado as diferenças individuais,
que existem, mas que não são coisas metafísicas, são elas mesmas produtos
sociais, é possível entender a sua formação num nível mais geral, no caso dos
grupos sociais. Pensar no gosto musical da população é algo problemático, tendo
em vista que não há homogeneidade neste gosto. Neste sentido, é interessante
perceber que o gosto musical é composto por diversas camadas que expressam um
grupo social ou diversos grupos/classes sociais.
Assim, podemos realizar algumas
divisões para analisar o gosto musical, sendo a principal divisão entre grande
público, composto pelas classes exploradas e dominadas em geral (proletariado,
lumpemproletariado, campesinato, pequenos proprietários, subalternos, etc.) e
setores menos privilegiados das classes privilegiadas[3],
bem como setores destas interessados ou oriundos das classes exploradas[4]
e público intelectualizado, composto por indivíduos das classes privilegiadas e
por indivíduos das classes exploradas que conseguem uma determinada
escolarização ou formação intelectual. O que predomina, no primeiro caso, é o
gosto musical espontâneo e, no segundo, o refletido.
No entanto, é possível perceber
subdivisões nos dois casos. No caso do grande público, a subdivisão ocorre mais
em casos regionais (no caso brasileiro, existem variações ligadas a estado,
cidade, bairros de regiões metropolitanas, etc.), ação do capital fonográfico
em determinados setores da sociedade (classes, grupos, etc.), etc. Assim, no
interior de São Paulo e de Goiás, a música sertaneja[5]
sempre teve os seus aficionados, enquanto que no Pernambuco há aqueles que
preferem o frevo e no Rio de Janeiro o samba tem um público permanente.
No caso do público
intelectualizado, há o gosto musical dos especialistas (músicos, compositores,
etc.), ou seja, da subesfera musical[6],
bem como daqueles que compartilham tal gosto por sua influência e legitimidade
socialmente conquistada, o que geralmente é dominante na sociedade neste setor.
O critério fundamental nessa subesfera é a técnica e a forma. A música clássica
é o exemplo maior nesse caso, mas que se reproduz, com diferenças, no interior
da música popular também. Acontece que nesse público se forma outros gostos
musicais, muitas vezes compartilhando suas preferências, outras vezes recusando
e elaborando outros critérios para definição do que é considerado bom. No caso,
os valores dominantes da subesfera musical apontam para a técnica e a forma, a
tradição musical, etc. enquanto que alguns setores intelectualizados vão,
partindo de outros valores, erigir outros critérios de qualidade musical, tais
como a crítica social, o vínculo com as raízes histórico-culturais, o
nacionalismo, etc. Algumas “facções”[7]
são constituídas também. Esse é o caso de grupos de indivíduos que elegem
determinadas preferências a partir de grupos unificados por um estilo de vida
(punks, emos, etc.), por relações de amizade, por compartilhamento de gostos,
etc. Além de grupos mais restritos, de gosto unificado e delimitado a um
gênero, banda, cantor, etc., há outros mais amplos, que possuem gosto unificado,
mas que vai além de um gênero ou outro elemento, embora sejam mais frágeis e
cujo elemento unificador é mais a amizade que gera compartilhamento e
reprodução de um mesmo gosto musical (seja um conjunto de músicas, gêneros,
cantores, ou critérios de julgamento e formação de gosto).
Em síntese, o gosto musical é
distinto no interior da população e podemos pensar em dois grandes blocos, o do
grande público, que constitui a maioria da população, e o público
intelectualizado, composto principalmente pelos indivíduos das classes
privilegiadas. Existe uma subdivisão no interior destes grupos e, inclusive,
certos setores que são “intermediários”, tal como parte da juventude
pertencente às classes desprivilegiadas, que possuem um gosto que muitas vezes
diverge do gosto dominante nestas, devido ao vínculo com outros jovens (de
outras classes, através dos meios oligopolistas de comunicação, etc.). Nesse
caso, alguns mesclam o gosto dominante do grande público com o do público
intelectualizado, outros aderem a este e abandona o primeiro. Despois dessa
breve análise da distribuição social do gosto musical, podemos discutir o papel
do capital fonográfico na sua formação.
O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Dominante
O capital fonográfico é
constituído pelas gravadoras de música, grandes empresas que com seu
desenvolvimento se tornaram oligopolistas. O capital fonográfico oligopolista
mundial conta com grandes gravadoras como a Universal, EMI, Sony, Warner, Indie
Recors, entre diversas outras, que são as mais importantes também no mercado
brasileiro, contando com algumas empresas oligopolistas brasileiras, como a
Eldorado e Som Livre. O capital fonográfico oligopolista tem toda uma estrutura
de produção, distribuição e divulgação articulada com outros setores do capital
comunicacional (“indústria cultural”), tais como redes de televisão, emissoras
de rádio, imprensa, etc. e com o capital comercial, tal como grandes
distribuidoras, lojas, etc. Nesse contexto, o grande capital fonográfico não
somente tem uma capacidade de produção muito mais elevada que o pequeno
capital, como também tem uma estrutura de divulgação e distribuição muito
superior e acaba sendo um das principais determinações da formação do gosto
dominante do grande público e, em menor grau, do público intelectualizado.
Esse processo se realiza através
do processo de gravação, já que o capital fonográfico seleciona o que vai
gravar e, portanto, escolhe os músicos, gêneros, cantores, bem como influencia
no processo de gravação. Além disso, uma vez que o cantor ou cantora, banda,
etc., pretende ter sucesso, há a busca em se adequar à dinâmica do capital
fonográfico (o que significa se adequar às suas exigências) e do capital
comunicacional (inclusive alguns sem perceber, mas querendo o sucesso, produz
aquilo que está sendo divulgado e aceito pelo grande público – ou, em alguns
casos, pelo público intelectualizado). Ao selecionar o que é produzido em
matéria de música, oferece um universo de escolhas limitadas e ao privilegiar e
gravar uma maior quantidade de determinado tipo de música, torna o processo de
escolha por parte do público ainda mais limitado.
A sua influência também se
manifesta no seu poder de distribuição e divulgação, através do capital
comercial e outros setores do capital comunicacional. A televisão e o rádio
assumem um papel fundamental nesse processo (sendo reforçado por outros). A
quantidade de músicas gravadas é muito maior do que a de músicas conhecidas
pelo público. Isso se deve ao fato de que as antigos Long Plays (LPs) ou os
atuais Compact Discs (CDs) possuem uma quantidade determinada de músicas,
geralmente dez, mas são divulgados uma ou duas músicas, e apenas no casos dos cantores
já consagrados um número maior. A escolha de quais faixas serão divulgadas e
terão primazia no disco também é determinada pelo capital fonográfico. O
capital fonográfico usa seus critérios para realizar tais escolhas e estes
interferem tanto no conteúdo da música (mensagem) quanto na forma (melodia,
arranjo, interpretação, etc.). Por conseguinte, não se espera de uma dupla
sertaneja nada além da interpretação tradicional (a não ser que se crie um
“derivado” com diferenciação, tal como o chamado “sertanejo universitário”), e
o que se quer são refrãos repetitivos e coisas que supostamente seriam do gosto
popular, que, contudo, é o gosto dominante imposto pelo capital fonográfico que
se reproduz na população, tornando-se “popular”. Nesse sentido, a produção de
músicas triviais é a preferência do capital fonográfico, por ser uma fórmula
mais fácil de sucesso e isso reforça tal preferência como gosto dominante no
grande público. As emissoras de rádio são influenciadas pelo capital
fonográfico e, além disso, muitas delas pertencem a eles ou fazem parte de
algum aglomerado do capital comunicacional, contando com gravadora, emissoras
de rádio e TV[8].
A presença das músicas na
televisão é outra fonte de popularidade. A Rede Globo, devido sua audiência,
que em outras épocas foi maior, exercia uma forte influência na produção dos
sucessos, com as trilhas sonoras de novelas, programas musicais que existiram
ou ainda existem (Globo de Ouro, Cassino do Chacrinha, Domingão do Faustão, Fantástico,
etc.). As outras redes de TV, algumas inclusive possuem público específico e
menos exigente, realizam processo semelhante e colocam em evidência cantores e
músicas de pior qualidade ainda, tal como nos programas de Silvio Santos e
semelhantes, bem como as redes “educativas”, que possuem um público
telespectador muito menor (TV Cultura, por exemplo), que trabalham geralmente
com músicas complexas, atendendo ao gosto musical do público intelectualizado.
A força do capital fonográfico
se manifesta quando ele resolve emplacar um produto, pois nem todos recebem a
mesma atenção, inclusive em sua ação sobre as emissoras de rádio. O caso dos
Beatles nos anos 1960, citado por Jambeiro (1975, p. 8) apenas exemplifica esse
processo:
A criação de
um ídolo para o público, no que se refere às gravadoras é a mais agressiva
possível e bastante comercial. Quando do lançamento dos Beatles no Brasil, por
exemplo, a gravadora que os lançou chegou ao ponto de conseguir de todas as
rádios que tocassem, num determinado dia, às 9 horas da manhã, todas juntas,
somente o disco de lançamento dos Beatles. Ao mesmo tempo, todas as lojas de
disco, nas mesmas cidades, faziam a mesma coisa, o que inundou os ouvidos de
grande parte da população brasileira com o som do ruidoso conjunto.
Capital Fonográfico e Grande Público
Essa ação tem uma eficácia
enorme principalmente junto ao grande público. A razão disto é que, como
colocamos anteriormente, o seu gosto é mais espontâneo e, por conseguinte, mais
influenciável pela repetição, familiaridade, clima social, simplicidade, etc. e,
portanto, mais próximo da música trivial. A influência do capital fonográfico
sobre outros setores do capital comunicacional (rádios, TVs, revistas, jornais,
etc.) criam um processo marcado pela repetição das mesmas músicas, criando um
clima social de que tais músicas são as da moda e que a maioria gosta, o que é
reforçado pela familiaridade e simplicidade das mesmas, uma exigência das
gravadoras para sua seleção, pois o grande público adere mais facilmente a tais
formas musicais. Os modismos e a fabricação de ídolos são algumas das
estratégias mais utilizadas pelo capital fonográfico.
A criação de modismos emerge com
o Rock and Roll, que era uma moda voltada principalmente para o público jovem
em geral[9]. O
que existia antes eram produções musicais para públicos específicos e canções
populares para o grande público, mas sem uma renovação rápida, o que passa a ser
presente com as mudanças do capitalismo no pós-segunda guerra mundial, com a
formação do regime de acumulação conjugado, que em suas interpretações
ideológicas ficou conhecido como “sociedade de consumo”. Esse processo foi
avançando com o tempo. Os modismos criam um vínculo geracional, pois ele atinge
principalmente a juventude. Esse foi o caso da música disco no final dos anos
1970 e início dos anos 1980, no qual tal gênero musical era importado dos
Estados Unidos e tinha seus copiadores nacionais, sendo inclusive tema de
novela da Rede Globo, Dancin’ Days. A
referida novela teve forte impacto, pois a disco
music aparecia constantemente não só na trilha sonora, mas na própria
temática da novela, com diversas cenas em discotecas (época das mesmas e das
matinês para crianças), no seu título e música de abertura, cantada pelo grupo
As Frenéticas. A trilha sonora internacional trazia várias músicas do gênero e
a nacional tinha até a roqueira Rita Lee entrando na moda, mas de forma
irônica, o título da música era “Agora é moda”.
A fabricação de ídolos é outra
estratégia do capital fonográfico. No caso brasileiro, isso ocorre desde Carmem
Miranda e as “grandes vozes” (Silvio Caldas, Vicente Celestino, Francisco
Alves, etc.), mas o processo de criação de ídolos se torna muito mais eficaz
após 1945, especialmente nos anos 1950 e 1960. Elvis Presley foi o primeiro
grande exemplo e The Beatles foi o segundo. Elvis Presley era um produto
direcionado para um novo e amplo mercado consumidor, a juventude[10],
e por isso a dança frenética, a irreverência e rebeldia foram elementos
utilizados, ao lado do uso expressivo de outros setores do capital
comunicacional, especialmente o cinema, já que este cantor estrelou diversos
filmes, aliado com outras estratégias, como grandes shows, televisão, etc. Já o
caso de The Beatles mantinha muitas
semelhanças, bem como diferenças. Apesar das diferenças, tais como o capital
comunicacional estar muito mais desenvolvido e o quarteto ser inglês, o sucesso
também foi estrondoso e o capital fonográfico teve um papel fundamental.
No caso brasileiro, o maior
exemplo é a cópia brasileira do rock norte-americano com a chamada “Jovem
Guarda” e, principalmente, Roberto Carlos. Obviamente que num contexto marcado
pela oposição entre bossa nova, por um lado, e a canção de protesto, por outro,
a emergência da Jovem Guarda, e também do tropicalismo, aumenta a variedade e
marca um processo de substituição, pois os últimos acabam superando os
primeiros. A música trivial, mais adequada ao gosto espontâneo, ganha espaço
nesse contexto e Roberto Carlos é escolhido para ser o grande ídolo fabricado
brasileiro, uma experiência do tipo Elvis Presley, mas sem a voz, estilo, entre
outras características, do mesmo. A escolha foi péssima, pois a voz de Roberto
Carlos é horrível e sua irreverência se limitou a algumas músicas bem
simplistas (tipo “Calhambeque”; “Splish, Splash” e “Pega Ladrão”), sem falar de
que o rock (dele e da Jovem Guarda) era risível.
A fabricação de Roberto Carlos
como ídolo seguiu a fórmula de Elvis Presley, que ficou conhecido como “Rei do
Rock”. Em programa de TV, na Rede Tupi, no início de sua carreira, Roberto Carlos
era apresentado como “Elvis Brasileiro”. A ideia de transformá-lo em “rei” tem
essa origem e acabou sendo reproduzido por muitos, em que pese apesar de suas
vendagens expressivas, sempre teve um público bastante oposto a ele, e por
razões bens distintas da oposição a Elvis Presley, pois este era acusado de
cantar música negra, entre outras questões sociais, enquanto que o problema de
Roberto Carlos era geralmente a má qualidade de suas músicas e/ou seu
conservadorismo político, expresso em suas letras de músicas (inexpressivas e
que não saiam do romantismo brega) e outras práticas concretas, tal como no seu
show no Chile onde agradece ao ditador Augusto Pinochet e sua relação amistosa
– e segundo alguns documentos, “colaboração” – com o regime militar. No
entanto, o programa de TV da “Jovem Guarda” (TV Record, 1965-1968), apresentado
por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, era uma fórmula que deu
resultados, inclusive maiores do que dos seus concorrentes[11].
Desta forma, o gosto dominante
do grande público é formado principalmente pelo capital fonográfico aliado aos
demais setores do capital comunicacional. Obviamente que existem outras
determinações que ultrapassam a força do capital fonográfico. Muitos indivíduos
do grande público têm acesso ao que é produzido para o público especializado e
alguns mudam ou mesclam suas preferências anteriores com as novas oriundas
desse contato. O sentimento nostálgico, de músicas do passado que relembram
acontecimentos, sentimentos, etc., também é uma determinação mais individual e
ligada à história do indivíduo[12],
bem como seus contatos sociais e informações sobre música e sociedade. As
músicas também podem despertar sentimentos e ao fazê-lo também promove o gosto
por ela. Os jovens e os que pretendem trabalhar no ramo musical, oriundo do que
foi chamado “grande público”, também se aproximam do gosto do público
intelectualizado, seja parcialmente ou de forma mais ampla. A época e as
ressonâncias das lutas sociais, os valores de cada grupo ou indivíduo dentro do
grande público, a formação intelectual, entre diversos outras determinações,
além das divisões já aludidas, tal como as regionais, dificulta o reino
absoluto do capital fonográfico. Isto sem esquecer os equívocos que os
responsáveis pelo capital fonográfico podem cometer, tal como a tentativa
frustrada de retomada da bossa nova após o fim do boom do rock brasileiro em
meados dos anos 1990, forçando inclusive roqueiros a produzir músicas nesse
gênero (Rita Lee, Lobão, Lulu Santos, etc.), o que foi um fracasso.
Capital Fonográfico e Público Intelectualizado
O capital fonográfico e seus
aliados do capital comunicacional também atua sobre o público intelectualizado.
Nesse caso, a influência é menor e os agentes da subesfera musical acabam sendo
fortes influências nas ações do capital fonográfico. Contudo, os interesses dos
artistas venais ligados diretamente ao capital comunicacional e dos outros,
ligados às estruturas de produção e reprodução do capital fonográfico, provoca
em vários setores (compostos por aqueles que são hegemônicos e estabelecidos na
subesfera musical) a política de “boa vizinhança” com os mais comerciais. É por
isso que poucos entraram em confronto com Roberto Carlos, por exemplo, tal como
o fez Sérgio Sampaio em sua música “Meu Pobre Blues” ou, recentemente, Caetano
Veloso, no caso mais específico a respeito da questão das biografias
não-autorizadas. No caso da música sertaneja, não deixa de ser engraçado como
Lulu Santos fez a crítica e depois voltou atrás, embora Guilherme Arantes,
agora em 2013, criticou e até agora não se arrependeu.
O público intelectualizado é
mais dividido do que o grande público. Alguns preferem música clássica, outros
MPB, Jazz, etc. Entre os mais jovens, o Rock ainda ocupa grande espaço, bem
como surgem facções com variados gostos musicais, formado desde por fã clubes
até grupos caracterizados por estilo de vida, sem falar nos saudosistas que
formam grupos de gosto referentes às músicas mais antigas (por cantor, época,
gênero, etc.). Esse processo de diferenciação tem a ver com a classe social,
frações de classes, nível de formação intelectual, idade, geração, atividade
profissional, até chegar às diferenças mais individuais, as mesmas que atuam
também sobre o grande público. Mas como o gosto musical do público
intelectualizado é mais refletido, então as músicas complexas são preferidas em
relação às músicas triviais. Obviamente que as músicas complexas não possuem
homogeneidade e seu nível de complexidade varia, bem como algumas músicas
triviais[13]
acabam conquistando também parcela do público intelectualizado, mas sendo mais
comum as que se destacam ou possuem algum diferencial.
O público intelectualizado
possui como determinação do seu gosto musical a racionalidade, o que gera
critérios específicos para julgar, avaliar e gostar de músicas, de acordo com
determinados valores. O hegemônico nesse público é o que a subesfera musical
define como qualidade e o aspecto técnico-formal torna-se o fundamental. Esse
formalismo e tecnicismo gera uma concepção elitista, o que é comum num setor de
tal público. Até intelectuais renomados, como Theodor Adorno (2008), demonstram
uma concepção elitista de música. Outros setores elegem como critério a
criticidade das músicas, embora muitos de forma ambígua, usando-o apenas para
justificar seu gosto geralmente irrefletido. No entanto, esse é um dos
critérios do público intelectualizado e a ênfase, ao contrário da concepção
elitista, recai é na mensagem, no conteúdo, e não na forma ou técnica. Para
algumas concepções mais extremas, até mesmo a desqualificação da forma e
técnica é realizada, como em algumas manifestações musicais e de gosto. Uma
outra vertente já apresenta um conjunto de critérios por enfatizar a totalidade
da música, embora colocando como essencial o conteúdo, ou seja, sua mensagem,
de caráter crítico, no sentido de uma utopia concreta.
Por detrás de cada uma dessas
preferências, se manifestam valores. No primeiro caso, revela-se um gosto
axiológico, pautado nos valores dominantes, enquanto que nos demais revela-se
um gosto axionômico, ou seja, fundado em valores autênticos[14].
Grupos mais restritos podem escolher gênero, cantor, banda, etc., e o critério,
nesse caso, tem a ver com uma tradição criada pelo grupo (ou pelo capital
fonográfico, região, etc.) ou fundada na história da música, etc., e os valores
que motivam isso pode ser o nacionalismo, regionalismo, rebeldia, entre outros.
O capital fonográfico produz
estratégias específicas para atingir tal público, sendo que o principal é o
discurso da qualidade, aliado ao formalismo e tecnicismo, e muitas aliando isso
com outros elementos, para criar uma ponte com o grande público. No entanto, o
capital fonográfico elege públicos específicos e existem gravadoras
especializadas em determinadas produções musicais, não só para o grande público,
mas também para o público intelectualizado. Existem emissoras de rádio
especializadas em Rock, Country, Jazz, MPB, etc., assim como para o grande
público existem emissoras especializadas em sertanejo, “jovem” ou “pop”, etc.
Da mesma forma, existem aquelas que querem atingir o maior número possível do
público intelectualizado, sendo, portanto, ecléticas ou priorizando a suposta
qualidade, expresso no formalismo/tecnicismo.
Contudo, esse público
intelectualizado que escolhe seu gosto musical de forma racionalizada, nem
sempre o faz através de amplas reflexões. Muitos conhecem muito pouco de
história da música, gêneros, técnica, sentimentos ou emoções despertados, etc.,
e geralmente seguem as opiniões surgidas de supostas “autoridades” no assunto
(seja os agentes da subesfera musical, seja indivíduos que fazem discurso sobre
qualidade ou técnica nos meios oligopolistas de comunicação), sendo que ambos
são acessíveis principalmente através do capital comunicacional (jornais,
revistas, rádio, TV e, em menor grau, livros), embora uma parte seja nas
instituições de ensino (universidades, por exemplo) ou mesmo amizades
consideradas “cults” ou entendidos no assunto. A razão para tal incorporação de
gosto musical remete aos valores dominantes e a necessidade de “distinção”,
para usar termo de Bourdieu (2007). Ou seja, na competição social, algo
estrutural da sociedade capitalista (VIANA, 2008), algumas pessoas querem se
destacar e vencer e uma das formas de conseguir isso é mostrando superioridade
intelectual, o que pode ser demonstrado por possuir um gosto pautado numa
suposta “qualidade”, em saber técnico, em opinião de pessoas cultas ou
especializadas[15].
Contudo, a aparência de inteligência revela, na essência, a ignorância.
Considerações Finais
O gosto musical individual é
constituído socialmente, seja ele qual for. Mesmo o setor mais refletido do
gosto musical do público intelectualizado tem sua formação social. O gosto
musical manifesta valores incorporados, tal com a técnica, a crítica, a
tradição, a nação, a região, a voz, a interpretação, a letra, a melodia, o
gênero, emoções ou sentimentos despertados, etc. e isso vale para o mais
complexo e “refinado”. Por isso, nada mais ilusório do que aqueles indivíduos
que não fazem autorreflexão e autocrítica sobre seu gosto (musical e qualquer
outro), julgando que ele é uma mônada, um mundo isolado, autossuficiente e
autoproduzido e, pior ainda, que é superior e indiscutível. Inclusive essa
última pretensão é mais um produto da competição social e da mentalidade
burguesa (VIANA, 2008).
Da mesma forma, recusar a
influência do capital fonográfico no gosto individual é ilusório, pois o que
varia é o seu grau. Outro problema é o relativismo, ao considerar que todo
gosto musical é equivalente, pois eles manifestam interesses, valores,
representações, sentimentos, etc., que são expressões de distintas perspectivas
de classe e, por conseguinte, não são neutras e nem equivalentes, servem para
objetivos e projetos distintos, desde aquele que é fascista até o que é
expressão da luta pela emancipação humana, aqueles que servem para entorpecer e
os que servem para desenvolver a consciência.
O gosto musical, portanto, deve
ser compreendido e analisado não para promover o seu domínio pela razão
instrumental, o que seria querer generalizar a preferência de parte do público
intelectualizado. O tecnicismo e o formalismo são as bases de um elitismo tão
pobre e torpe quanto qualquer concepção conservadora. A música é uma totalidade
e sua qualidade só pode ser avaliada levando isso em consideração (VIANA,
2007), bem como entendendo que o seu conteúdo é o essencial e elemento
principal de avaliação, embora não único. Uma música que passa uma mensagem
excelente, com teor crítico e elaborado, mas sua forma (interpretação, arranjo,
melodia, etc.) é mal elaborada, é, comparativamente, inferior em qualidade a
uma outra que tanto conteúdo quanto forma são bem estruturadas.
Por fim, é fundamental entender
que o gosto musical é formado socialmente e que o capital fonográfico tem um
papel importante em sua formação. Os indivíduos precisam ter consciência de que
seu gosto musical não é natural, que brotou em sua cabeça a partir do nada, de algo
inato ou de algo metafísico como um “mundo interior” de caráter místico. O
desejo de liberdade não deve promover a confusão entre o ideal e o real. A
ilusão de liberdade é um reforço para a reprodução da falta de liberdade e o
reconhecimento da não-liberdade é um primeiro passo para sua realização.
Referências
ADORNO, Theodor. Escritos Musicales IV. Madrid: Akal, 2008.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe e Estilo de Vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.
DIAS, Marcia Tosta. Os Donos da
Voz. Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura. São
Paulo: Boitempo, 2000.
JAMBEIRO, Othon. Canção de Massa
– As Condições da Produção. São Paulo, Pioneira, 1975.
VIANA, Nildo. A Dinâmica da
Violência Juvenil. São Paulo: Ar Editora, 2014a.
VIANA,
Nildo. A Esfera Artística. Marx,
Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. 2ª edição, Porto Alegre: Zouk, 2011b.
VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia.
2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011a.
VIANA, Nildo. Juventude e
Sociedade. No prelo. 2014b
VIANA, Nildo. O Papel do Indivíduo na História. Cadernos de História.
Belo Horizonte/PUC-MG, 2013.
VIANA, Nildo. Os
Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007a.
VIANA, Nildo. Para Além da Crítica dos Meios de Comunicação. In: VIANA,
Nildo (org.). Indústria Cultural e
Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e
Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB.
[1]
Não vamos discutir aqui de forma aprofundada o conceito de capital fonográfico
ou o conceito de capital comunicacional. Para ficar compreensível o que
queremos dizer entenda-se pelo primeiro termo o que comumente se chama de
“indústria fonográfica” e pelo segundo “indústria cultural”, apesar das
diferenças de concepções e, por conseguinte, de terminologia. Sobre “indústria
fonográfica” existe uma certa bibliografia, com destaque para Dias (2000) e
sobre capital comunicacional é possível consultar Viana (2009).
[2]
Não há espaço para uma discussão sobre as diversas definições e concepções de
gosto. Aqui apenas esclarecemos que em nossa perspectiva gosto significa
disposição afetiva favorável a um ser, objeto, pessoa, obra de arte, etc. Nesse
sentido, o gosto tem elementos sentimentais e racionais, sendo que em alguns
casos o peso maior é dos sentimentos e no segundo da razão. O gosto musical,
portanto, é a disposição afetiva favorável a determinadas músicas, cantores ou
cantoras, bandas, gêneros, etc.
[3]
As classes privilegiadas são a burguesia e suas classes auxiliares,
especialmente a burocracia e a intelectualidade.
[4]
Os setores interessados são aqueles que produzem ou ganha com determinada
produção musical, como é o caso dos cantores de música trivial (“brega” e
músicas simples em geral). No segundo caso, temos, como exemplo, os “novos
ricos” ou pessoas oriundas das classes exploradas que conseguem uma ascensão
social (sob as mais variadas formas, desde o sucesso inesperado em algum
programa televisivo, tal como um Reality
Show, passando pela sorte na loteria ou por processos sociais mais amplos
que permitem ascensão de um contingente maior de pessoas). Em ambos os casos,
os indivíduos mudam de classe social, mas não possuem a cultura da classe a
qual passam a pertencer, mantendo sua cultura anterior, mesmo que mesclando
alguns aspectos.
[5]
Nada mais falso do que a ideia de Goiânia é uma cidade que tradicionalmente
tinha vínculo com música sertaneja. Isso foi um produto do capital
comunicacional a partir dos anos 1980, que, graças a sua ação acabou
influenciando o gosto musical de parte da população, inclusive muitos que
explicitamente não gostavam deste tipo de música.
[6]
A esfera artística, assim como as demais, pode ser dividida em subesferas, e no
seu caso, há a subesfera musical, teatral, literária, quadrinística, etc.
[7]
Ao invés de usar termos como “tribos” ou “guetos”, preferimos “facções”,
retirando-lhe o sentido militar ou pejorativo. As facções são grupos informais
reunidos em torno de uma causa, estilo de vida, valores, gostos, posições
políticas, crenças religiosas, etc. O termo tribo é descontextualizado, pois é
manifestação das sociedades tribais e sua adaptação ao caso da sociedade
moderna é problemática, assim como gueto, esse último para tratar dos grupos
que abordamos aqui.
[8]
O caso mais conhecido e famoso é o das organizações globo (e suas reprodutoras
regionais, embora poucas possuam gravadoras), que além da Rede de TV, emissoras
de rádio, jornais, editora, também possui a gravadora Som Livre, responsável
pelas trilhas sonoras das suas novelas. A maior gravadora brasileira, a
Eldorado, é do Grupo Estadão.
[9]
Claro que isso não se refere ao Rock como um todo e nem em relação aos seus
produtores mais críticos, mas o foco aqui é o capital fonográfico e este que
possibilitou a explosão desse gênero musical e sob esta forma.
[10]
A juventude é um grupo social constituído na sociedade capitalista (VIANA, 2014a)
e tem como uma de suas características atribuídas à rebeldia (VIANA, 2014a;
VIANA, 2014b) e o rock, com sua irreverência, crítica ou ironia, dependendo da
época, banda, etc. acaba sendo a forma ideal de música para tal grupo.
[11]
Na época havia o programa dos representantes da bossa nova, O Fino da Bossa (TV Record, 1965-1967),
apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, que acabou perdendo espaço para
eles, bem como, na sequência, o programa dos representantes da Tropicália,
Gilberto Gil e Caetano Veloso, Divino
Maravilhoso (TV Tupi, outubro-dezembro de 1968, pois o programa foi
cancelado devido exílio dos apresentadores pelo regime militar), entre outros.
[12]
É um caso individual que afeta aos indivíduos em geral, sob formas e com
intensidades diferentes. O capital fonográfico também se aproveita disso, tal
como se pode perceber no lançamento (e sucesso) de Stars On 45, fazendo medley
ou pout pourri, ou seja, mistura de
músicas selecionadas de um cantor/a, banda, estilo, etc. O Stars On 45 fez medleys dos Beatles,
Bee Gees, Aba, Boney M, Disco Music, músicas dos anos 1970 e dos anos 1980,
entre outros. Mas o capital fonográfico ganha mais hoje com o avanço
tecnológico que permite a aquisição de músicas antigas e permite grandes
vendagens, tal como ocorre com as músicas dos anos 1960. 1970 e,
principalmente, 1980 e os diversos CDs lançados com coletâneas desse período
demonstra isso. Obviamente que isso tem a ver com a perda de qualidade e
sucessão mais rápida dos modismos realizada pelo capital fonográfico e o
desagrado do público de gerações anteriores.
[13]
As músicas triviais são aquelas que são mais simples, seja nas letras,
melodias, arranjos, interpretação, geralmente em mais de um desses elementos
simultâneos. Não se deve confundir músicas triviais com músicas “cafonas”
(termo usado na década de 1970 e generalizado pela novela com o nome “Cafona”),
ou “bregas” (termo utilizado a partir do início dos anos 1980 e popularizado
pela Rede Globo principalmente via sua novela, “Brega Chique”, de 1987), pois
estas são músicas de determinado tipo, consideradas de “mau gosto”, seja devido
a um romantismo simplório, obscenidade, exageros visuais, vocais, etc. As
músicas complexas, como o nome já diz, são as que a complexidade é maior em
seus elementos, seja em um ou vários (letra, melodia, arranjo, interpretação).
Existem algumas músicas que ficam num plano intermediário. Algumas buscam
mesclas intencionalmente, como Eduardo Dusek na MPB em algumas de suas
produções, especialmente seu LP “Brega Chique” (1984). Em outros casos, é o
espírito rebelde ou intenção crítica que gera isso, tal como no Punk Rock, onde
elementos de músicas triviais (e até alguns que seriam considerados de música
brega, tal como alguns trechos de música dos Garotos Podres, para citar apenas
um exemplo) se encontram presentes. Não deixa de ser curioso o desdém de certos
intelectuais pela música “cafona” ou “brega” apelando para a concepção de
indústria cultural de Adorno, sem perceber que até as palavras que usam são
produtos desta e que, portanto, não estão tão em oposição a ela como pensam.
[14]
Sobre axiologia e axionomia, cf. Viana (2007), e a respeito dos critérios
escolhidos para o gosto e o que se considera de qualidade, veja o capítulo
“valores e qualidade”.
[15]
Isso atinge até algumas pessoas das classes desprivilegiadas, mesmo que apenas
formalmente, tal como no caso de um operário que diz gostar de música clássica
apesar de não entendê-la, tal como se pode ver em pesquisa realizada por
Bourdieu (1994).
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Publicado originalmente em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/4viana17/142
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